Sobre traumas, personalidade “borderline” e a dinâmica do psiquismo
Entrevistadora: Professor, o senhor poderia explanar sobre o efeito dos traumas?
Prof. Celso Lugão: Bem, sempre que alguém é ameaçado, determinados processos entram em ação. A combinação de vários fatores, como a idade, o tipo de trauma, de ameaça, etc., com estes processos dá uma configuração particular a cada caso.
Por exemplo, se alguém foi molestado sexualmente quando criança, este abuso sexual, dependendo da idade, de como ocorreu, se houve violência, etc., pode gerar um quadro clínico complexo, um quadro com processos que envolvem sintomas de vários quadros clínicos (síndromes)… Enfim uma comorbidade, algo de “borderline”, um distúrbio histriônico de personalidade, ansiedade e depressão…
O abuso sexual + o sentir-se abandonado + causas genéticas e outras geradas na gestação (muitas vezes desconhecidas, mas possíveis), produzem distúrbios dissociativos para enfrentar o medo, a humilhação, a raiva…
Com isto esta pessoa terá flutuações de humor em torno destes sentimentos.
Quando suas defesas para sobreviver são forçadas, tal pessoa poderá reagir de forma radical… Tipo “ou tudo ou nada”; uma forma de pensamento dicotômico, ou me ama ou me odeia.
Entrevistadora: Por que isto acontece?
Prof. Celso Lugão: Porque no psiquismo durante os traumas se formam memórias do evento… Mantendo o exemplo, se alguém foi abusado sexualmente e enquanto isto havia um cheiro de pipoca no ar, pode ser que isto se some à memória traumática… Donde, a pessoa vai vivendo e aparentemente está tudo bem, então alguém faz pipoca perto dela… Pronto!
O cheiro (âncora olfativa, termo da PNL ou NLP) deflagra fortes reações. Quem está fora do psiquismo não entende o por que de tal reação.
Atendi um casal que teve um problema destes em sua lua de mel… Como eram religiosos e o sexo era permitido só após o matrimônio… E eles seguiram isto… Lá estavam eles nas preliminares quando um toque do marido nos seios e na vagina despertou uma lembrança arcaica traumática nela.
Todos estes fatores visuais, auditivos e cinestésicos podem ser âncoras, ou seja, estão na memória traumática e funcionam como gatilhos disparadores, como no dia que o parente de um cliente fez uma anedota sobre homossexuais na sessão de psicoterapia de família e um dos membros da família “explodiu”, ou seja, teve uma fortíssima reação emocional pois aquela anedota funcionou como uma metáfora, só que nada terapêutica.
Entrevistadora: E com o tratamento psicoterápico e os medicamentos se consegue mudar isto?
Prof. Celso Lugão: Sim, segundo a mãe de um cliente me escreveu, transcrevo aqui…
“NO ENTANTO CELSO, TENHO PERCEBIDO QUE NESTES ÚLTIMOS TEMPOS ELE TEM SUPERADO MUITOS DESSES EVENTOS . EU TENHO TOCADO EM ALGUNS ASSUNTOS QUE ANTIGAMENTE NÃO PODERIA TOCAR, PORQUE ELE SE DEFENDIA AGRESSIVAMENTE. MUITAS VEZES TEMOS CONSEGUIDO CONVERSAR. ELE TEM SE ABERTO MAIS , CONFIDENCIANDO ASSUNTOS QUE ELE NUNCA ME DIZIA ANTERIORMENTE… FALA ATÉ SOBRE INTIMIDADES DE RELAÇÕES SEXUAIS QUE TEM PINTADO AQUI OU ALI…”
Ou seja… Mesmo quando se está em tratamento, ou após este, podem ocorrer episódios que têm a capacidade de agitar as estruturas da pessoa que passou por traumas severos…
É como uma ponte remendada… Dá para passar, mas dependendo de onde se pisa, se sente a instabilidade.
Há locais onde se pisa que se for colocado muito peso ali pode fazer a ponte ruir.
Por isto os medicamentos são fundamentais para a estabilidade da estrutura da ponte, aí poderemos trabalhar sobre ela com segurança.
São como andaimes.
Entrevistadora: Como são as pessoas com a tal personalidade borderline?
Prof. Celso Lugão: São pessoas muito sensíveis às circunstâncias ambientais. Elas experimentam intensos temores de abandono e raiva inadequada, mesmo diante de uma separação real de tempo limitado ou quando existem mudanças inevitáveis em seus planos (por exemplo, reação de súbito desespero quando o clínico anuncia que o final da sessão está próximo; fúria ou pânico quando alguém que lhes é importante precisa cancelar um encontro).
Eles podem acreditar que este “abandono” implica um julgamento que eles são “maus”. Esse medo do abandono está relacionado a uma intolerância à solidão e a uma necessidade de ter outras pessoas consigo. Seus esforços frenéticos para evitar o abandono podem incluir ações impulsivas tais como comportamento de automutilação ou até mesmo suicida.
Costumam ter um padrão de relacionamentos instáveis e intensos, se usam drogas, mesmo se bebem um pouco, podem se transformar muito.
Eles podem idealizar potenciais cuidadores ou amantes já no primeiro ou no segundo encontro, exigir que passem muito tempo juntos e compartilhar detalhes extremamente íntimos na fase inicial de um relacionamento. Pode haver, entretanto, uma rápida passagem da idealização para a desvalorização, por achar que a outra pessoa não se importa o suficiente, não dá o bastante, não está “ali” o suficiente.
Estas pessoas podem sentir empatia e carinho por outras pessoas, mas apenas com a expectativa de que a outra pessoa “estará lá” para também atender às suas próprias necessidades, quando exigido. Isto é complexo, é algo como “narciso diante do espelho”, há poderosos mecanismos de projeção envolvidos neste processo, ou seja, ele sente um carinho e uma rejeição por ele mesmo, e isto é projetado no outro. Claro, sempre “escapa” algum afeto genuíno em relação ao outro, mas seus problemas de confluência disfuncional são graves.
São pessoas que têm mudanças súbitas e dramáticas em suas opiniões sobre os outros, ou seja, percebem os outros alternadamente como suportes benévolos ou como cruelmente punitivos. Tais mudanças frequentemente refletem a desilusão com uma pessoa cujas qualidades de devotamento foram idealizadas ou cuja rejeição ou abandono são esperados.
Note outro trecho da conversa com aquela mesma mãe…
“Com os medicamentos…. Sem o surto, ele é disciplinado para tomar os remédios. Está bem melhor.
Hoje tivemos um incidentezinho semelhante ao que houve na reunião de ontem. Teve interpretação deturpada do que falei. Claro, o que ele sempre interpreta segundo seus fantasmas, ele achou que eu o estava criticando. Eu tentava dizer que para tomar o remédio não precisava comer tanto quanto um almoço, podia ser um pedacinho de pão, uma fruta. Ele ficou puto, guardou o prato e se trancou no quarto. Cada vez que ele ia tomar o remédio, queria comida como arroz, feijão, etc. Ele achou que eu o estava censurando, como se eu estivesse dando a entender que ele não podia comer, mais por usura que qualquer outra coisa. Não suporta crítica! Nessa hora não adianta tentar explicar, ele não ouve. Umas duas horas depois, saiu do quarto mansinho… Mas não me dirigiu a palavra!”
Entrevistadora: O senhor disse que estas pessoas podem sentir empatia e carinho por outras pessoas, mas apenas com a expectativa de que a outra pessoa “estará lá” para também atender às suas próprias necessidades, quando exigido. Poderia explicar melhor isto?
Prof. Celso Lugão: Ok, veja estes dois relatos de outra mãe sobre seu filho em terapia comigo…
“… porque geralmente quando está chegando uma crise, ele fica verbalmente agressivo comigo, muito autoritário e daqui a pouco, me endeusa ao extremo, ficando exageradamente afetuoso. A culpa que ele carrega é tão grande, que consegue ver acusação, traição em todas as conversas… Difícil lidar com esse vai e vem”.
“Meu filho comentou que a sessão de ontem foi uma das melhores. Saiu tão aliviado que caminhou do seu consultório até Copacabana! (risos). Bom final de semana dr.”
Minha resposta para ela talvez te responda…
Prezada mãe, as manifestações de seu filho, seja elogiando ou criticando ainda estão muito por conta de mecanismos transferenciais, há muita mistura em seus afetos.
Ou seja, fazem parte do quadro dele. É ele se relacionando com ele mesmo, e não com o outro, são projeções de seus sentimentos positivos e negativos, projeções e não interações, percebes?
Por isto ocorrem as tais reações acima e as que vc comentou comigo… “Ele não aceita uma outra opinião, custa muito a enxergar outro ponto de vista “.
Fica mais claro agora?
Porque devido aos traumas houve a dissociação para sobreviver, desta resultam mecanismos de defesa que o isolam de uma relação com a realidade. Ele vive em um mundo a parte, todos nós na verdade, vivemos dentro de nossos cérebros, mas, não havendo a dissociação da realidade conseguimos interagir e nos adaptar as ocorrências do mundo.
Se ocorre algo diferente do lado de fora reagimos, ou fugindo ou enfrentando de acordo com a situação.
As respostas costumam ser coerentes com a situação, por exemplo, diante de uma ameaça vc percebe se deve fugir ou enfrentar.
Quando você congela, não sai do lugar, como houve com teu filho no episódio da avalanche (o cliente ficou imóvel diante de uma avalanche de água e lama, e teria morrido se não tivesse sido salvo por um vizinho), isto revela que está havendo uma dissociação, ou naquela hora ou proveniente do passado, ou ambas as coisas, ou seja, a própria ameaça presente, a avalanche, foi suficiente para gerar uma dissociação, isto é o que caracteriza o conceito de trauma.
Se houve o trauma no passado e um tipo de resposta foi usado, o mais provável é que a resposta se reproduza porque o organismo sobreviveu usando aquela resposta, donde a repetição da resposta.
“Desta vez eu poderia agir diferente”, não existe tal opção no psiquismo, a crença básica é que ” só estou vivo porque a situação seguiu tal rumo”.
Portanto, a interação com o mundo é limitada, no mais das vezes, sob pressão, a pessoa traumatizada repete respostas que não são adaptativas.
Há projeções de seu mundo interno e não interações com o mundo externo.
Felizmente teu filho conseguiu vários avanços ao longo dos anos, ou seja, se uma pessoa é 100% dissociada, em geral morre logo ou precisa de cuidados intensos, 100% de atenção…
Assim, todas as crianças têm que aprender a diferença entre o eu e o mundo para se adaptar e sobreviver.
Isto já é um trabalho e tanto, mas, se ainda ocorre uma trauma, a dissociação gera mecanismos de isolamento da dor, e por tabela, isola do mundo.
Ocorre uma generalização, do tipo tudo ou nada, por exemplo, o mundo não presta…
As pessoas são perigosas, as mães não são confiáveis…
Não existe uma ponderação, o mundo tem algumas coisas boas e algumas coisas ruins, há pessoas perigosas e outras não, há mães confiáveis e outras não.
É o tal pensamento dicotômico, a partícula de ligação é “ou” e não “e”.
Na minha avaliação sobre esta sessão com teu filho, tiveram bons momentos e momentos ruins.
É como uma festa que você foi, você diz que teve umas coisas boas e outras nem tanto, ou em um Hospital, há bons profissionais e outros não.
A avaliação “esta sessão foi a melhor “, ou você é o melhor terapeuta do mundo, ou você é a melhor mãe do mundo, são generalizações provenientes do pensamento tudo ou nada, por isto quando o humor vira, se ouve, como já ouvi de um paciente em surto: ” vou te denunciar, vou te processar, é um absurdo você atender alguém”, e a mulher dele chorava ao lado e não entendia nada, rs. Ela dizia para o marido: “Mas você disse ontem que ele era o melhor, que era uma pessoa muito humana…”
Entrevistadora: Compreendi, o senhor falou também em “problemas de confluência disfuncional”, poderia traduzir, para encerrarmos a entrevista, (risos)?
Prof. Celso Lugão: Falha nossa (risos), desculpe. Trata-se de jargão técnico…
Quando uma pessoa não sente nenhuma barreira entre ela e seu meio, quando sente que ela e o meio são um, então ela está em confluência com esse meio, não há como distinguir as partes do todo nesses casos.
“O confluente não consegue diferenciar aquilo que ele próprio é daquilo que os outros são, não consegue se relacionar bem e ao mesmo tempo não suporta se ver sozinho em contato social. O indivíduo amarra suas necessidades e emoções num amontoado de completa confusão até que não mais se dá conta do que quer fazer e de como está se impedindo de fazê-lo, exigindo que os outros sejam como ele, não tolerando diferenças.” (PERLS, 1988).
As diferentes abordagens terapêuticas têm conceitos que se referem a processos humanos, tentam explicar por que algumas coisas se fundem ou se repetem, ou por que as pessoas agem de determinada maneira.
Por exemplo, na abordagem familiar sistêmica o processo de lealdade parental ajuda a explicar a repetição intergeracional, isto é, porque alguns comportamentos se repetem na família (BOSZORMENYI-NAG & SPARK,1983).
Explicando através de outra abordagem, Bert Hellinger & Hovël (2007), ao proporem um modelo chamado “constelações familiares” citam que de forma inconsciente um membro da família pode repetir o destino de outro, seja por lealdade ou para evitar que outro membro tenha que passar por isso. Em suas palavras.
“Nas famílias existe a possibilidade de que a criança queira repetir o destino de um irmão ou irmã falecida, ou da mãe falecida ou do pai falecido. A criança diz em seu íntimo: “Eu irei com você”.” (HELLINGER & HÖVEL, 2007 p.22).
Entrevistadora: Compreendi, mas embora o senhor tenha tocado em assuntos interessantes e pertinentes, como esta história da criança e dos efeitos da morte sobre seu destino, precisamos encerrar. Muito agradecido pela gentileza, professor.
Prof. Celso Lugão: É sempre um prazer colaborar com a divulgação de informações.
Citações extraídas de:
*BOSZORMENYI-NAGY, I. & SPARK, G. M., Lealtades Invisibles. Buenos Aires: Amrrortu Editores, 1983.
*HELLINGER, B., HÖVEL, G. Constelações familiares – O reconhecimento das ordens do amor – conversas sobre emaranhamentos e soluções. 6ª ed. São Paulo: Cultrix, 2007.
*PERLS, F.S.; A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia. Rio de janeiro: LTC, 1988.
Drogas docinhos e abuso sexual
Obs. É importante frisar também que infelizmente existem as falsas memórias que geram confusão e sofrimento.