Rio, 07 de outubro de 1983.
Artigo: As idéias de C. G. Jung: a função transcendente.
By Celso Lugão da Veiga.
Dentro da conhecida perspectiva teleológica da teorização proposta por C. G. Jung sabe-se que o arquétipo central, o self, é o processo que orienta e torna possível a integração da personalidade.
Em sonhos sua manifestação pode ser percebida como formas impessoais, distantes do sonhador, como mandalas, círculos e entidades divinas. Tais símbolos representam a reconciliação das polaridades, a motivação pela unidade, ou seja, o self impulsiona o processo de individuação, a força que faz com que os sistemas isolados da personalidade se integrem.
O self foi um conceito que surgiu após a elaboração do conceito de inconsciente coletivo.
C. G. Jung postulou que o inconsciente coletivo é composto por sistemas isolados, estruturas denominadas arquétipos e argumentou que havia um que representava o esforço dos seres humanos em atingir a unidade, chamou este arquétipo de self. O símbolo denominado mandala, encontrado em muitas culturas, é exatamente a reificação desta força propulsora.
Assim, a energia psíquica regida pelos princípios da equivalência e da entropia se movimenta pelos diferentes sistemas que compõem a personalidade.
O princípio da equivalência, influência do mecanicismo da época, reza que a energia não desaparece, ela se desloca conforme o princípio da conservação de energia, portanto se uma pessoa perde o interesse por algo logo aquela energia será deslocada para outro alvo, esta é a base da motivação.
O princípio da entropia opera buscando um equilíbrio de forças: então, se uma pessoa tem muita energia no arquétipo anima, ou na atitude introvertida, haverá uma tensão no sistema em busca desta distribuição mais equânime da energia. Assim, animus e a extroversão estariam sempre forçando esta troca devido ao desequilíbrio energético.
Então, através do processo de individuação haverá uma tendência para uma distribuição harmônica de energia… Se algum sistema tem pouca energia ele tende a extrair de outro e isto é a operação do princípio da entropia. Logo, alguém que tenha uma exacerbação de animus terá um desequilíbrio e sofrerá perturbações até conseguir uma conexão com anima e sua expressão.
Uma vez que a pessoa consiga certo equilíbrio da energia pelos vários sistemas da personalidade (os arquétipos, as atitudes) então o processo denominado função transcendente irá reunir e unificar todas as estruturas, o resultado seria a junção e a aceitação de nossas polaridades, de nossas contradições, nossos anjos e nossos demônios.
No campo da Arte, aonde C. G. Jung pesquisou e retirou muitos exemplos, podemos encontrar algumas produções que servem para clarificar este processo.
Isto pode ser apreciado no filme O Cristal Encantado (Dark Cristal- 1982), um filme de aventura e ficção que tem como clímax o momento em que se pode perceber a função transcendente em ação. (Ver anexo I sobre o filme no final do artigo).
O mesmo se pode observar na letra da música “Se eu quiser falar com Deus”, de Gilberto Gil.
Nos versos que destaco abaixo (no final deste artigo existe a letra na íntegra)…
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Podem-se ler metáforas e ver imagens sugeridas pelo autor que revelam os aspectos paradoxais da existência, revelam o contato com a “sombra”, arquétipo nuclear de todo o material reprimido; todos os pensamentos proibidos estão lá, tudo que consideramos abominável, tudo que negligenciamos, tudo que banimos do confronto com a nossa “persona”, com o nosso ego. São as nossas contradições que se tornam tanto mais perigosas se não forem reconhecidas, aceitas e ouvidas. Sem a habilidade de um negociador que saiba da importância de uma colaboração cuidadosa entre as partes e as intenções destas partes, todo o processo de individuação e a função transcendente estarão impossibilitados.
Justamente por causa desta compreensão é que muitos junguianos na Alemanha têm tido interesse na Programação Neurolingüística. Porque esta área desenvolveu uma série de técnicas para tornar eficaz esta negociação.
Então, quando se ouve estes versos inspirados… “Tenho que aceitar a dor… Tenho que me achar medonho… E apesar de um mal tamanho… Alegrar meu coração” , fica a imagem clara do que é a função transcendente e seu enorme poder curativo de reconciliação de você com você mesmo.
Percebe-se, portanto, que os argumentos epistemológicos gerados pela teorização junguiana implicam em um tipo de pensamento que se convencionou chamar de complexo que, como explica Edgar Morin, aponta para a impossibilidade de se eliminar a incerteza. O pensamento complexo significa reconhecer que não se pode eliminar a incerteza. O pensamento complexo então, tenta negociar com a incerteza.
Justamente quando o psicoterapeuta auxilia seu cliente nesta negociação entre os arquétipos da sombra e da persona, ou quaisquer outras instâncias arquetípicas, ele tem que estar preparado para pensar de forma complexa, o próprio Carl Jung dizia não haver uma técnica, na acepção desta palavra, para se ensinar ao jovem terapeuta; “se podemos falar de alguma técnica, esta consiste apenas numa atitude. Em primeiro lugar é preciso aceitar e levar seriamente em conta a existência da sombra. Segundo, é necessário ser informado sobre suas qualidades e intenções. Terceiro, negociações longas e difíceis serão inevitáveis… Ninguém pode saber qual será a conseqüência final de tais negociações. A única coisa de que se tem conhecimento é que, através da colaboração cuidadosa, o próprio problema vem a ser mudado.” (in Fadiman e Frager, 1979, p. 55)
Outro exemplo, que locupleta o tema da negociação, pode ser visto na entrevista de Edgar Morin, respondendo sobre se havia sido sincero em seu livro “Meus demônios”.
E. Morin declarou que nunca temos certeza de nossa absoluta sinceridade. E utilizou uma metáfora que inclusive explica as bases do pensamento complexo: “a sinceridade é como a chama de uma vela, para ela acender precisa haver a combustão de alguma coisa no início, que não é a sinceridade. Do alto da chama sai uma fumaça negra. A sinceridade é este momento de luz… Então, eu acredito ser sincero… Eu sei que todo ser humano engana a si mesmo porque todos nós somos muito compartimentados… Acreditamos que somos sinceros. Isso é muito fácil. Esta é uma maneira de enganar a si mesmo… em toda vida existem, às vezes, belas coisas que nos honram, mas existem também pequenas coisas que não nos honram. Então qual é a nossa vontade? Queremos destacar bastante as coisas belas e minimizar um pouco as pequenas coisas.”
L. Festinger e D. Bramel (1972) refletem e aplicam a Teoria da Dissonância Cognitiva a este tema. Citam um adágio da sabedoria popular: “A coerência tola é o demônio dos que têm pouco juízo” e argumentam que “provavelmente não há uma só pessoa cujo comportamento, cujas opiniões, crenças e valores constituam um sistema perfeitamente coerente” (ibid).
Também Bert Hellinger ao explicar os fundamentos de seu trabalho com as Constelações Familiares fala sobre o conceito de consciência, mostrando que é preciso um conceito mais amplo, a que ele denomina a Grande Alma que seria um processo que reintegra a todos os membros da família que estão separados; há uma semelhança óbvia entre o conceito de self e a função transcendente de Jung. (Vide nota no final deste artigo).
O conceito da Gestalt terapia sobre polaridades, bem como a psicoterapia, passa esta idéia de integração.
Frederick Perls teria sido influenciado pelas idéias do filósofo Salomon Friedlander, que teve inúmeras obras destruídas pelo nazismo. Claudio Naranjo tentou resgatar o que foi possível e fica claro, lendo as colocações do filósofo, considerado o “Voltaire alemão” e também “o único herdeiro de Nietzsche”, que os preceitos da Gestalt têm sua origem ali. A Gestalt acentua o valor da diferenciação e a possibilidade da síntese.
Bibliografia:
FESTINGER,L. & BRAMEL,D. As reações de seres humanos à dissonância cognitiva in BACHRACH, A.J. Fundamentos Experimentais da Psicologia Clínica. São Paulo. Ed. Herder. 1972.
MORIN, E. Meus Demônios. Edição brasileira. Bertrand-Brasil. 1997.
Gilberto Gil
1980
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
ANEXO I
Sinopse do filme Dark Cristal
O que diz a lenda
Há muitos anos numa terra desconhecida, O Cristal Encantado era considerado a grande fonte da verdade do universo. Porém, num terrível acidente, ele acabou se partindo e causando um imenso caos no mundo, o qual resultou no surgimento de duas raças antagônicas: os terríveis Skeksis e os bondosos Mystics.
Assim, para se restabelecer a paz no universo, segundo uma velha profecia, seria necessário restaurar o Cristal, o que poderia ser feito somente por um ser da raça Gelfling e exatamente no período em que os três sóis daquela terra se alinhassem numa grande conjunção.
Porém, para evitar que a profecia fosse cumprida, os Skeksis se apossaram do grande cristal e tentaram acabar com os Gelfings, restando apenas Jen, a quem restou a tarefa de reestabelecer o equilíbrio através de muitas aventuras e desafios.
O CRISTAL ENCANTADO (1982) –Estados Unidos
Jim Henson, criador dos Muppets, reúne espetaculares efeitos especiais para criar um mundo de fantasia, povoado por duendes, gnomos e trolls, neste filme vencedor do Grande Prêmio do Festival de Cinema Fantástico de Avoriaz. A ação se passa há mil anos, quando uma convulsão tomou conta do Universo. O Grande Cristal, protetor das forças universais, se quebrou, deixando a Terra em completa escuridão, dominada pelo tirania dos Skeksis. Quando os três sóis estão para se juntar, o valente Jen vê a possibilidade de fazer o cristal voltar a brilhar e salvar o planeta.
Se esse filme fosse feito hoje, provavelmente seria toda em animação computadorizada. Ou não. Se Henson estivesse vivo talvez ele ainda preferisse o modo a que estava acostumado… com bonecos e animatronics.
O Cristal Encantado é mais um clássico da década de 80, que figura ao lado de Labirinto e A Lenda entre os mais conhecidos filmes de fantasia dessa década.
A história é sobre um cristal místico que, ao rachar, deu origem a duas raças, uma má e a outra boa. A má dizimou os Gelflings restando apenas Jen, o qual uma antiga profecia dizia que este restauraria o cristal.
Quando seu moribundo mestre lhe conta isto, Jen se dá conta de que não sabe nada do que deve fazer, mas pega vai atrás da lasca do cristal a qual ele deve restaurar ao mesmo.
No caminho encontra Kira, também uma Gelfling, e descobre que não é o último de sua raça.
Juntos vão enfrentar toda sorte de perigos para tentar cumprir o destino de Jen.
ANEXO II
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar
Milton H. Erickson foi um psiquiatra americano que tornou-se conhecido por um trabalho inédito, que foi o de associar a hipnose às psicoterapias. Nasceu em Nevada, no dia 15 de dezembro de 1901, e morreu no dia 27 de março de 1980. Como psiquiatra, teve uma boa formação em psicoterapia e, por ter seu lado intuitivo e observador muito desenvolvido, foi se envolvendo, ao longo de sua vida, com a hipnose, a ponto de ser conhecido nos Estados Unidos como “Sr. Hipnose”.
Erickson foi fundador e presidente da American Society of Clinical Hypnosis, além de fundador e editor da revista daquela sociedade, a “American Journal of Clinical Hypnosis”. Tinha uma forma muito peculiar de ensinar, através de seminários didáticos, nos quais seus alunos mais experimentavam sua metodologia do que se prendiam a ela. Criando uma nova abordagem de tratamento, que é a Hipnoterapia Ericksoniana, ele trabalhava em cima do sintoma do paciente, entrando, através de uma hipnose naturalista, na forma em que a pessoa causava o problema a si mesmo. Ao longo de sua carreira, obteve excelentes resultados no tratamento de casos diversos como depressões, fobias, problemas sexuais, doenças psicossomáticas e outros. Nas aulas experimentais que dava, costumava colocar seus alunos em transe e modificava padrões antigos que causava problemas a eles.
Dentre os vários livros que escreveu, destacam-se, entre outros, “Coletânea de Papéis”, publicado em quatro volumes, “O Homem de Fevereiro” e “Hipnose Médica e Odontológica”. Nos Estados Unidos, dentre os seus seguidores mais conhecidos, destacam-se André Weitzenhoffer, Esnest Hillgard, Jay Haley e Jeffrey Kenneth Zeig, sendo que este último foi seu aluno durante seis anos e, neste período, aprendeu e desenvolveu um modelo de psicoterapia baseado nos ensinamentos do mestre.
Atualmente é o presidente da Fundação Milton Erickson.
No Brasil o psicólogo Celso Lugão da Veiga, professor e supervisor em psicoterapia da UERJ, desenvolveu uma forma de psicoterapia estratégica que se fundamenta também nas orientações ericksonianas.
Seu treinamento, além de ter estudado com Jeffrey Zeig, presidente da Milton Erickson Foundation, inclui uma formação em Programação Neuro-Lingüística com Johann Kluczny, dos Institutos de NLP de Berlin e de Atenas, e nos métodos de Francine Shapiro, conhecidos sob a sigla EMDR. Além disto possui estudos em Gestalt Terapia, AT (Análise Transacional – E. Berne), SE (Somatic Experience – Peter Levine), Bioenergética (A. Lowen) e em várias formas de Terapia Sistêmica. Também utiliza princípios de manobras corporais oriundas de seus estudos da tradição oriental, como shiatsu, tai-chi-chuan, aikido, e kun-nye.
Considerado, por ele mesmo, um psicoterapeuta eclético designa sua abordagem de estratégica, devido a grande influência do modus operandi ericksoniano em seu trabalho e também por causa de sua análise epistemológica do que seria uma psicoterapia estratégica.
Leciona psicologia desde 1981, tendo explorado vários temas, inclusive a Psicologia da Morte, e atua na UERJ desde 1986, tendo sido homenageado com a Medalha Jean Martin Charcot e o Diploma de Honra ao Mérito, pela Sociedade Brasileira de Hipnose durante o VIII Congresso Panamericano de Hipnose e Medicina Psicossomática, em 11 de setembro de 1993, “pelos relevantes serviços prestados à Hipnose como técnica científica e pela divulgação da mesma”.
Foi um dos principais responsáveis pelo trabalho do CRP-05 que auxiliou o CFP a justificar e ratificar o uso da técnica da hipnose pelo psicólogo.
Nasceu no Rio de Janeiro, em 07 de outubro de 1954, e, usando o estilo do humor ericksoniano, diz que morrer é a última coisa que pretende fazer nesta vida.
Nota sobre a concepção de Bert Helinger
Esta conciencia sigue una ley importante. Esa ley dice: cualquier miembro de la familia, independientemente de cómo sea, tiene el mismo derecho a la pertenencia que todos los demás.
Por tanto, en esta conciencia, la distinción entre bueno y malo, como lo establece la conciencia personal, no existe. En cambio, busca mantener la integridad de toda la familia, pero de una manera que no le ayuda a nadie. Porque no le ayuda nada al primer marido de la bisabuela el hecho de que, años después, tres hombres o más se suiciden a la misma edad, el mismo día. Lo único que ocurre es que la desgracia se perpetúa.
¿Cómo se puede salir de este círculo vicioso? No podemos hacerlo con la ayuda de la conciencia. Tienen que obrar otras fuerzas para que esto se logre y eso es lo que yo llamo los movimientos del alma: los movimientos de la gran alma de la que todos participamos. Esta Gran Alma quiere reintegrar a todos los que están separados.